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É com profunda tristeza que comunicamos à comunidade universitária o falecimento do Prof. Marcos Lutz Müller, livre-docente do Departamento de Filosofia da Unicamp. Nascido em Porto Alegre em 1943, num seio familiar muito simples de descendentes de imigrantes alemães do interior rural, Marcos se iniciou cedo com a mãe – que estudava e dava aulas de piano – no estudo da música clássica. Aluno dedicado, aos 15 anos tocou a sonata Tempestade, de Beethoven, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, por ocasião de um prêmio musical. As condições da família não lhe permitiam, porém, levar adiante a carreira de musicista. Embora a paixão pela música clássica tenha sido uma constante em sua vida, foino contato com os padres jesuítas que Marcos descobriu sua a vocação filosófica. Em 1965,formou-se pela UFRGS em Filosofia e Direito, a primeira por predileção, a segunda por exigência paterna. Como se destacara em ambos os cursos, surgiam-lhe no horizonte os prospectos de uma carreira acadêmica. A infame ditadura militar então instalada, no entanto, bloqueou de maneira decisiva o caminho do jovem professor. Ansiando por horizontes mais amplos de atuação, Marcos se viu obrigado a buscar refúgio fora do país. Com o auxílio de professores e amigos, instalou-se primeiro na Universidade de Freiburg e em seguida na de Heidelberg, onde conheceu – numa passeata contra o Xá da Irã, como ele gostava de contar – a sua companheira de toda a vida, a Profa. Jeanne-Marie Gagnebin.

 

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Marcos se doutorou nessa cidade em 1975 com uma tese intitulada “A teoria sartriana da negação” (Sartres Theorie der Negation), um estudo de fôlego, que trabalha sistematicamente além de toda a obra filosófica de Sartre os conceitos de negação em Hegel, Marx, Husserl e Heidegger. De volta ao Brasil nos primeiros lampejos da reabertura política, em 1978, Marcos inicia então sua carreira de docente na Unicamp. Um professor exigente, que preparava cada uma de suas aulas nos mínimos detalhes; um filósofo de ampla envergadura, que tratava com rigor e profundidade Aristóteles, Tomás, Hobbes, Rousseau, Kant, Hegel, Marx e a tradição dialética – mas não apenas, porque seu interesse se estendia, de maneira nada marginal, também à filosofia oriental e à filosofia da música; um orientador rigoroso, mas extremamente cuidadoso e afetivo; um escritor que polia seus textos com muita dificuldade, mas artesanalmente; um ávido leitor de jornais e arguto conhecedor da realidade política nacional, Marcos Müller se esforçou ao longo das quatro décadas seguintes pela efetivação de um radical e profícuo ‘arejamento sistemático’ dos estudos de filosofia política e história da filosofia, especialmente no que concerne aos universos de Kant, Hegel e Marx.

 

Os mais de trinta textos que publicou ao longo da carreira documentam sobretudo as várias etapas da esmerada tradução e rigoroso comentário da Filosofia do Direito de Hegel. Além de um marco interpretativo incontornável dessa obra, Marcos estabeleceu um raro e elevadíssimo patamar qualitativo no que concerne à tradução portuguesa de um texto filosófico em alemão. Já os seus últimos cursos ministrados na Unicamp, em 2008, versaram sobre a Ciência da Lógica de Hegel e a bem dizer acertaram alguns dos marcos fundamentais da leitura e interpretação dessa obra seminal, que apenas nos últimos anos vem sendo ‘redescoberta’ no debate internacional. Cumprido então o percurso de três décadas através do cerne sistemático da filosofia alemã, Marcos dedicou-se em seguida, ao longo dos últimos quinze anos, à instituição de um importante grupo de estudos sobre a filosofia japonesa, chinesa e indiana, contribuindo mais uma vez, agora por um outro caminho, à ampliação dos horizontes das discussões filosóficas em língua portuguesa.

 

No último ano, em encontros quase semanais com o editor de sua grande obra, revisou uma última vez a sua tradução comentada da Filosofia do Direito – que em sua oficina tornara-se um curso completo de filosofia política, de Aristóteles às discussões contemporâneas. A “Apresentação” dessa tradução foi o último texto que escreveu, finalizado poucos dias antes de sofrer o acidente vascular-cerebral de cujas complicações veio a falecer, depois de um mês de corajosa luta pela vida, no entardecer do dia 15 de setembro. Em Valinhos, pois os hospitais de Campinas não puderam acolhê-lo em razão da lotação ocasionada pela pandemia de Covid-19...

 

Um ser humano de rara integridade, professor exemplar, estilista rigoroso do texto filosófico, brilhante tradutor, um amigo sincero e de coração doce, Marcos Müller nos deixa um legado de valor inestimável para a constituição do debate filosófico de qualidade no Brasil. Nossas sinceras condolências à Profa. Jeanne-Marie, às duas filhas do casal, Rafaela e Cristina, e à pequena Helena, sua neta.


Fábio Nolasco
Erick Lima